O Trauma no Cotidiano

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Na história da humanidade, traumas sempre existiram. Contudo, só recentemente, a partir dos estudos de Freud, em finais do século 19 e primeira metade do século 20, iniciamos a tomar consciência de sua fixação em nossa memória inconsciente, assim como de sua atuação automática e intempestiva no cotidiano de nossas vidas. Eles, de fato, se manifestam nas “entrelinhas” do nosso dia a dia, através de reações emocionais automáticas, tais como: medo, insegurança, raiva, impotência, agressividade, dissimulação…, todos em níveis excessivos, ou seja, reações desproporcionais às mais variadas experiências do presente.

A afirmação de Freud é de que uma reação emocional desproporcional a uma circunstância do presente não é do presente, mas sim do passado, querendo com isso quer dizer que, quando essa fenomenologia ocorre, dá-se a transferência de uma reação do passado, que aprendemos no passado, para uma circunstância do presente. Nossas reações intempestivas têm a ver com as marcas do nosso passado pessoal, que se reproduzem no presente. Usualmente, dizemos que traumas do passado geram sintomas observáveis no presente.

Os sintomas são sinais de que o trauma ainda está fixado em nosso inconsciente e, de lá, ele atua automaticamente. Os traumas estão escondidos, submersos, no inconsciente e de lá atuam. Na metodologia de investigação do materialismo dialético se diz que “a aparência esconde uma essência”, isto é, o que aparece (o superficial) sinaliza que há outra informação por detrás (o essencial). De forma semelhante ocorre com o trauma na vida individual. Há um dado oculto que exige investigação e integração. De certa forma, ocorre como desfia a esfinge: “Decifra-me ou te devoro”! Nossas reações intempestivas no cotidiano nos sinalizam que um trauma nos diz: “Preste atenção em mim. Estou aqui. Se desejar abrir mão de mim, terá que desvendar-me, compreender-me e incorporar-me como algo que ocorreu no passado, mas não está ocorrendo mais”. Afinal traumatizados por uma fenomenologia — seja ela qual for —, estamos sempre a “espera” de que o que aconteceu vai acontecer novamente, mas não sabemos quando e, por isso mesmo, nosso inconsciente permanece atento e defendido, Ao primeiro e mais leve sinal de que alguma coisa parecida com aquela que ocorreu no passado venha a ocorrer, a reação é imediata.

Essa expectativa e esse modo defendido de ser, que atuam de maneira inconsciente, nos impedem de ser e fazer o que desejamos e como desejamos. Mais recentemente — dos anos 1980 para cá —, os neurologistas, usando investigação por imagens, têm mapeado em nosso sistema nervoso onde se sediam determinados comportamentos nossos e, nesse processo, descobriram que as memórias emocionais traumáticas têm sua sede neurológica nas amígdalas cerebrais, que se localizam uma em cada um dos hemisférios cerebrais: uma no direito e outra no esquerdo. Amígdala, em grego, significa amêndoa, que é a forma material como elas se apresentam. Descobriram mais: que elas atuam, automaticamente, de forma independente de nossos atos de vontade; isso significa que, dada determinada circunstância, se ela tiver alguma semelhança com uma experiência negativa do passado, as amígdalas disparam intempestivamente seus atos de defesa e, dessa forma, nos “obriga” a reagir.

O que os neurologistas recentes têm descoberto confirmam, pois, as intuições clínicas de Freud. Como, ao longo do tempo, os traumas emocionais têm sido trabalhados? Freud propôs a “livre associação” como recurso de acesso e elaboração de experiências encapsuladas no inconsciente; Wilhelm Reich e seus seguidores, tais como Alexander Lowen com a Bioenergética e David Boadella com a Biossíntese, propuseram, por caminhos variados, o contato com a experiência essencial de cada um, ultrapassando as camadas superficiais da personalidade; variadas abordagens do auto desenvolvimento propuseram os recursos de visualização criativa, assim como outros propuseram meios regressivos. Nós, do Curando a Criança Ferida Dentro de Nós, propomos uma atividade residencial, onde cada participante vivencia sucessivas atividades investigativas e integrativas, na perspectiva de acessar, dissolver e integrar as experiências traumáticas do passado, que atuam negativamente em nossas vidas no presente. O que pesquisadores, psicólogos, psicoterapeutas, terapeutas, das mais variadas abordagens, têm buscado, ao longo dos últimos cem anos, é encontrar e praticar recursos pelos quais a vida possa ser melhor e mais plena para além dos nossos traumas. Importa que a vida possa ser mais saudável para cada um de nós individualmente, assim como para a coletividade da qual participamos; afinal, para a humanidade.

A expressão do campo emocional, no momento em que vivemos, está entre aqueles que estão mais distantes da satisfatoriedade. Os sinais desse fato encontram-se nas desavenças, desentendimentos e manipulações no cotidiano, tanto individual como coletivo. Temos indivíduos contra indivíduos, etnias contra etnias, tradições religiosas contra tradições religiosas, nacionalidades contra nacionalidades… Por enquanto, devido nossas machucaduras no passado, não temos conseguido olhar — para além das diferenças e singularidades — para todos como seres humanos iguais com direito à vida, nos seus mais variados sentidos. Cuidar dos traumas do passado, do ponto de vista individual, é um modo de aprender a viver melhor conosco mesmos e com o meio que nos cerca; e, do ponto de vista coletivo, é um modo político-social de encontrar e estabelecer a paz entre grupos humanos e povos. Para além dos nossos traumas emocionais, poderemos viver em harmonia conosco, com os outros, com o meio.

O Trauma pode ser entendido como o resultado de uma situação externa extrema vivenciada pela pessoa como algo profundamente ameaçador para a qual não houve preparação prévia, ou seja, as estratégias de adaptação já conhecidas fracassam e o indivíduo passa a ter comportamentos, sintomas e reações desadaptativas.
Durante as sessões de psicoterapia, não é raro vermos as pessoas relatarem que não sabem quando passaram a vivenciar os problemas que as afligem no presente, e através de uma cuidadosa investigação e escuta, percebemos que experiências que são inocentes para alguns podem promover profundas mudanças na vida de outros que passam por situações semelhantes. Diante disso, as reações traumáticas nunca devem ser julgadas como fraqueza ou incapacidade de lidar com o evento estressante, mas sim como parte importante para a compreensão do complexo sistema psíquico que rege nossas ações e emoções.

Dentre os eventos traumáticos mais comuns estão os acidentes de trânsito, perda de entes queridos, violência, ataques físicos ou sexuais, desastres naturais, crescer em famílias muito ansiosas ou violentas, vivências de humilhação ou negligência emocional, entre outros.
Ao dessensibilizar as lembranças difíceis do passado e os traumas ligados a elas durante um processo de psicoterapia, as pessoas expandem as possibilidades de vivenciar e negociar suas relações atuais. Assim, torna-se possível agir de maneira mais adaptativa e com maior qualidade nos seus relacionamentos através do autoconhecimento.

Sintomas de Trauma – como identificar:

• Sentimentos constantes de desamparo e desapego;
• Reações desproporcionais, tais como choro fácil e explosões de ira, sem motivo aparente;
• Evitação de situações e pensamentos que façam lembrar experiências negativas;
• Sensação de futuro abreviado, do tipo “não vou ter tempo de…”
• Significativa dificuldade de concentração;
• Estado constante de alerta com fácil reação de susto;
• Lembranças negativas que aparecem na mente de repente e com bastante freqüência;
• Insônia, pesadelos ou sonhos repetitivos;
• Sensações fisiológicas tais como: taquicardia, sudorese, hiperventilação / respiração rápida e curta e dores de cabeça, quando algum fato lembra o trauma ou problema.
Indicações para Terapia:
• Transtorno de Estresse Pós-Traumático;
• Vítimas de abuso físico, moral ou sexual;
• Lutos complicados;
• Fobias e medos (de animais, de escuro, de dirigir, de falar em público, de lugares fechados, de avião, etc.);
• Transtorno obsessivo-compulsivo;
• Diversos tipos de depressão;
• Manejo de dor crônica;
• Memórias dolorosas e perturbadoras;
• Transtornos de ansiedade em geral;
• Crenças negativas sobre si mesmo ou sobre a vida;
• Auxílio no tratamento de controle da obesidade e distúrbios alimentares;
• Transtornos dissociativos;
• Doenças psicossomáticas;
• Aprimoramento de desempenho futuro e criatividade, sendo útil para estudantes, palestrantes, artistas e atletas.

Os Transtorno do estresse pós-traumático: o susto, o medo, a notícia de uma perda inesperada. São situações que fazem parte do cotidiano de milhares de brasileiros que convivem com a violência nas grandes cidades, por exemplo.
Depois que uma pessoa sofre um estresse muito grande, qualquer situação que lembre aquele fato ruim dispara o mecanismo de alarme. Os sinais do estresse pós-traumático formam uma tríade – hiper alerta (a pessoa fica sensível a barulhos e a notícias ruins), flash back (a pessoa acha que a situação ruim pela qual passou está acontecendo de novo) e dissociamento social (a pessoa fica apática, indiferente, emocionalmente distante).
Também existem os sintomas físicos, como ansiedade, taquicardia, dor no peito, insônia, pesadelos, perda de peso, perda de apetite, tremor nas mãos e tensão muscular. Quando a pessoa passa por uma situação de estresse muito grande, ela pode apresentar esses sintomas. Entretanto, quando eles permanecem por um mês é preciso procurar ajuda.

Os eventos mais comuns que desencadeiam traumas

Há muitas formas de se originar um transtorno do trauma. As pessoas que entram neste estado passam por algum momento de estresse muito elevado e não conseguem se libertar sozinhas da reação automática desencadeada pelo organismo – o congelamento. Para Peter Levine, um dos maiores especialistas no assunto, o trauma não é uma doença, mas uma ferida causada por medo, desamparo e perda.
Levine diz que o trauma é decorrente de qualquer experiência vivenciada por uma pessoa de forma rápida, intensa e precoce demais. Os eventos que o originam podem ocorrer na infância ou na vida adulta. As experiências individuais dos pacientes é que ditam de onde vêm seus traumas, mas, de maneira geral, as fontes principais estão em situações relacionadas à violência do cotidiano – assaltos, violência doméstica, sequestros, abusos sexuais. Não é difícil encontrar pessoas que sofrem de transtornos do trauma após vivenciarem ou testemunharem desastres naturais, como enchentes e terremotos, guerras, acidentes de carro e bullying.
No Brasil, ainda há pessoas que precisam de acompanhamento por causa dos abusos sofridos na época da ditadura – diz Cornélia Rossi, diretora-fundadora da Associação Brasileira do Trauma.
Ela explica que, no caso do bulliyng sofrido por crianças, é importante ficar atento para que os efeitos do trauma não sejam a reprodução do comportamento violento, nem a busca por uma válvula de escape, como o uso de drogas. Existe ainda o trauma primário (quando a pessoa realmente passou pelo evento traumatizando) e o trauma secundário (quando ela é apenas testemunha).
– Imagina uma pessoa que sobreviveu a uma inundação ou a um deslizamento de terra. Ela pode ter perdido parentes, pertences, mas se tiver recursos pessoais, se tiver condições de superar, pode ter uma reação de imediato, e conseguir levar a vida adiante. Mas uma pessoa que não perdeu nada, mas viu a cena de alguém ser arrastado pela água, e não tem esta estrutura interna, pode ficar tão traumatizada quanto alguém que estava diretamente envolvido – explica a especialista.
Os estudos mais recentes sobre a neurofisiologia do trauma indicam que uma forma de evitá-lo é buscar a afetividade. O corpo responde à liberação de oxitocina, o hormônio do prazer e do amor, que age sobre o sistema nervoso autônomo do indivíduo, relacionado a nossa resposta ao estresse agudo. Assim, se possível, durante uma situação de estresse elevado, tente se acalmar, busque o apoio de pessoas de quem gosta e lembre-se de coisas que lhe dão prazer. E, se vir alguém num momento de crise ou choque, aproxime-se e passe-lhe segurança. O importante é fazer a pessoa se acalmar, sentir-se protegida e querida.

VIOLÊNCIA, ACIDENTE E TRAUMA: A CLÍNICA PSICANALÍTICA FRENTE AO REAL DA URGÊNCIA E DA EMERGÊNCIA /   O SUJEITO FRENTE AO REAL TRAUMÁTICO

Uma das questões do atendimento em situações de Acidentes, Violência e Trauma é a profunda angústia em que o sujeito se encontra. Uma angústia que avassala suas entranhas e o desnorteia. O sujeito perde as referências, deixa de pensar, não consegue decidir ou agir. Há uma paralisia, um momento de crise. Os piores pensamentos o assolam e não permitem dar vazão a novas ideias que possam redirecionar melhor sua vida. É o que mais tarde, em seu ensino, Lacan nomeou de encontro com o Real, o traumatismo de lidar com o imprevisto do Real. O esfacelamento do sujeito, o momento de ruptura, de descontinuidade, o espaço sem lei que se descortina e tira o chão do sujeito. Ou seja, um encontro com o real que pode levar a um colapso imaginário, uma queda narcísica.

Podemos utilizar, como exemplo de trauma, o recorte do trágico acidente que foi muito discutido na mídia brasileira e envolveu o filho da atriz Cissa Guimarães. Rafael faleceu no Rio de Janeiro, no dia 20 de julho de 2010, quando andava de skate, com amigos num túnel fechado por policiais. Ele foi atropelado por um moço que surgiu, de repente, fazendo racha com o amigo. Cissa Guimarães, após dois meses, deu uma entrevista para a Revista Veja (6 de outubro de 2010) em que fala do efeito do Real perante a morte de um filho:
“Nos primeiros dias, a minha dor era tão grande que eu ficava à deriva. Não conseguia tomar decisões de ordem prática. Não conseguia, por exemplo, decidir o que ia comer. Alguns amigos se encarregavam da minha alimentação. E isso dura um pouco até hoje. Sempre que vou atravessar a rua, alguém que está comigo é que olha para os dois lados. Estou um pouco aérea. (…) Às 8, soubemos da morte. Mas eu não me lembro de muito mais coisas daquele dia. Depois, eu me sentia exausta e toda doída. Passei dias sem saber dos detalhes do crime.” (VEJA, 2010, p.22)

PSICANÁLISE

Para falarmos sobre as perdas, algo frequente em situação de trauma, podemos ir ao começo do trabalho de Lacan, no Seminário IV (1995/1956-1957) em que este nomeia as três formas de falta de objeto como: privação, frustração e castração. Grosso modo, diz, apenas a título de introdução, que a privação consiste em uma natureza de falta e é essencialmente uma falta real. É um furo. O objeto perdido é um objeto simbólico.
Por sua vez, a frustração é vivida como um dano, uma lesão no plano imaginário. Nela impera o domínio da reivindicação. É aquilo que foi desejado e não obtido, mas sem referência à aquisição, ou à satisfação. A frustração é por si mesma o domínio das exigências desenfreadas e sem lei. O centro da noção de frustração é o dano imaginário. O objeto é visto por Lacan como objeto real. Por fim, a castração é o conceito central da noção de falta de objeto, da lei primordial, do que há de lei fundamental na interdição do incesto e na estrutura do Édipo. A castração se classifica na categoria da dívida simbólica, sendo o objeto considerado objeto imaginário.
Assim, Lacan conceitua as formas de inscrição da falta, ao mesmo tempo em que pensa as dimensões do objeto à luz dos três registros: Real, Simbólico e Imaginário. Nesse momento de sua teorização, o falo é o conceito central nessa articulação entre o objeto e os registros, no que tange à questão da falta. E, para que se possa discutir acidente, violência e trauma, é preciso admitir que o indivíduo se defronta, visceralmente, com a falta.

A falta de objeto é uma questão que toca todo ser humano. Neste exato momento, estamos privados de tantos objetos que nem nos damos conta de quantos… Ao longo da vida, são inúmeras as frustrações, objetos que desejamos, mas a que não tivemos acesso… É a condição de sujeito dividido, logo, castrado, incompleto, faltante. Porém, as situações de emergência e urgência são marcadas pela intensidade e gravidade, da falta de objeto, no momento. A privação (por exemplo: de não ter o socorro no tempo certo) traz efeitos danosos e, provavelmente irreversíveis, colocando o sujeito entre a vida e a morte. As frustrações existem em grande quantidade e intensidade, abalando estruturas de base do sujeito: casamento, família, moradia, saúde; todas ao mesmo tempo, e a probabilidade de elas continuarem acontecendo, ao longo de um tempo, é muito grande. Assim, a castração vai dilacerando as vísceras do sujeito, apontando a morte, um despedaçamento real, como uma possibilidade não tão distante.

O Real é contingente. Ele irrompe de forma dramática. O Real não se explica, pois se o explicarmos, ele deixa de ser Real. Ele invade a vida, aos pedaços. No Seminário XXIII, Lacan se refere ao real como estando fora da lei: “O verdadeiro real implica a ausência de lei. O real não tem ordem” (2003/1974-1975, p.83), Para se aproximar do real, não adianta ir pela lógica do racional, pois não são as mesmas leis que o regem, e nem sempre é possível ir pela lógica do simbólico, pois o Real é sem lei. O real irrompe fora de uma linearidade espaço-temporal.
Existem diferentes formas de o Real emergir, mas podemos dizer que as situações de Acidente, Violência e Trauma são, por excelência, da ordem do Real. A chamada clínica do Real, que Lacan apresentou na década de 1970, tem muito a contribuir quanto à saúde mental do politraumatizado e daqueles que viveram o choque junto ao indivíduo, bem como às pessoas que sofrerão as consequências da situação — suas famílias, por exemplo.

O psicanalista deve levar em conta que quem sofre o trauma, ou seus efeitos, tende a ter um encontro com o Real que o invade, o sujeito é tomado pela angústia e, dessa forma, é comum que as construções simbólicas se desmontem. A pessoa pode ficar em choque e não parar de chorar, pode ‘racionalizar’, pode avaliar erroneamente que em dois ou três dias já voltará ao trabalho e tudo continuará como antes, etc. São muitas as formas de responder ao real traumático. Cruglak (2001, p.11) aponta que, frente ao Real, podemos fazer um sintoma ou um ato de criação, um delírio ou uma manifestação do corpo. Difícil sair incólume ao choque com o Real. O sujeito perde-se na direção a seguir… muitas vezes, um dos laços se desata, desarticulando o nó borromeano, gerando crise, angústias e sofrimentos. Frente ao trauma, o real irrompe. É preciso responder a ele. E nem sempre é possível responder da melhor forma para nossas vidas.

Este é o estado do sujeito que recebemos na ‘clínica das urgências e emergências’: em pronto-socorro, em hospital geral, em instituições de saúde, etc. Como o psicanalista pode se posicionar frente ao sujeito que está avassalado, dilacerado, pelas três relações de falta de objeto: privação, frustração e castração? O que Lacan nomeou, mais tarde, como sujeito frente ao trauma. O trauma que irrompe e invade o Real dividindo o sujeito.

INTERVENÇÃO EM SITUAÇÃO DE TRAUMA — A IDENTIFICAÇÃO

Se nem tudo passa pelo simbólico, se não é possível traduzir todo o inconsciente em palavras, como atingir o sujeito? Mesmo porque, em situações de trauma, uma das questões é que não há tempo hábil para traduzir o inconsciente em palavras e essa é a crítica que a psicanálise recebe, com frenquência, ao se deparar com tais situações limites. Como operar nesta nova clínica lacaniana frente ao Real? Frente a situações de trauma?

Nossa hipótese é de que a teoria lacaniana oferece instrumentos interessantes para se pensar a atuação do psicanalista nessas circunstâncias. Para tanto, nos valeremos do Seminário XXIII (2003/1975-1976) e do Seminário XXIV (1976), nos quais Lacan dedica-se a pensar o trauma como da ordem do Real. Como algo que invade o que está estabelecido, é algo que causa uma fratura, um rompimento: “o real em questão tem o valor do que chamamos geralmente de um traumatismo” (2003/1975-1976, p.79) É algo que se despedaça: “só podemos alcançar pedaços de real” (2003/1975-1976, p.71). Ou seja, neste ponto, Lacan entende que podemos ter acesso sim ao real, porém, em fragmentos. Então, ele deixa de ser o impossível e o impensável para o que Lacan apresenta no Seminário XXIV (1976): “o Real é o possível à espera de se escrever”.
A grande questão no caso, passa a ser: como podemos, como psicanalistas, alcançar um pedaço desse real? Pois, é somente alcançando um pedaço desse real que o analista tem o mínimo de condição de trabalho frente ao sujeito esfacelado na situação de trauma. Ou seja, numa situação de trauma, o psicanalista não tem a transferência do sujeito, pois, na maioria das vezes, é um primeiro encontro; e também não pode contar muito com o simbólico do sujeito, pois houve uma abertura maior para o real. Lacan enfatiza que podemos, então, contar com a identificação, pois a identificação sempre é de um pedaço, de uma parte, de uma borda, um primeiro laço. A identificação é o primeiro passo para a constituição do nó e, portanto, da constituição do sujeito do inconsciente e, sempre, o psicanalista irá se posicionar no lugar do objeto. O psicanalista pode intervir e alinhavar, fazer uma sutura, momentânea, porém eficaz para as primeiras manobras nas situações de urgência e emergência, utilizando um recurso imaginário.

Freud, em Psicologia das massas e análise do eu (1921), fala de três modos específicos de identificação: 1) Identificação ao desejo do Outro, que aparece muito bem no caso da Bela Açougueira de A interpretação dos sonhos (1900), e que Lacan desenvolveu depois sobre a capacidade de ir em busca de desejos que não são próprios do sujeito, mas como imitação a uma identificação; 2) Identificação ao traço unário: a pura diferença; 3) Identificação no quadro da situação edípica. Freud coloca o caso Dora como paradigma. Por uma identificação ao pai faz um sintoma. Uma parte pelo todo (a tosse da Sra. K).

INTERVENÇÃO DO PSICANALISTA EM SITUAÇÃO DE TRAUMA

Quando lidamos, na maior parte do tempo, com o trauma atravessando fortemente a vida das pessoas, temos que considerar que elas estão em ‘suspensão’. O sistema psíquico está tendo que digerir a realidade, e uma realidade bastante indigesta, sofrida, com dores e separações. Os mecanismos de defesa agem rápido: a negação, a regressão, a racionalização, etc. Algumas pessoas ficam em estado de choque, outras ficam agitadas e otimistas, outras ficam mais cabisbaixas e pessimistas, sem conseguir ver uma luz, etc. São formas imediatas de reagir ao Real. São formas de suspensão da vida cotidiana. Como disse a atriz Cissa Guimarães, fica-se à deriva, não se consegue tomar decisões, até quanto ao que comer, fica-se aéreo e a sensação pode durar muito tempo, o dia a dia não encaixa mais em suas vidas, às vezes, por meses. É necessário reexplicar a vida, recriá-la talvez… e, para isso, é necessário um investimento psíquico muito grande.

Bom, independentemente do caso de cada pessoa, pudemos ver que o atravessamento do real, o trauma, num primeiro momento, faz um corte em que ‘tira a conexão do sujeito com o mundo’, aparece o alheamento, a suspensão das referências. E é nesse estado que o analista encontra a pessoa pela primeira vez.
No exemplo de Cissa Guimarães — “Às 8, soubemos da morte. Mas eu não me lembro de muito mais coisas daquele dia. Depois, eu me sentia exausta e toda doída. Passei dias sem saber dos detalhes do crime…” A pessoa fica atordoada, não se conecta, não compreende os detalhes, fica algo à espera de se inscrever.
Uma conexão com uma parte da vida, com uma pessoa, com um objeto talvez. Uma conexão com o analista, com a presença do analista. Algumas vezes, ouvimos frases como: “preciso ficar bem por causa do meu neto, ele precisa de mim”. Ou então, “preciso melhorar porque não tem ninguém para cuidar da casa”. São formas de conexão que precisam ser incentivadas para que o sujeito crie forças imaginárias de sobrevivência. Pois, as pessoas estão desesperadas, desorientadas e, assim como o psicótico ou a pessoa enlutada, ficam sem um reduto em que possam existir, em suspensão, e é com este fenômeno que o analista deve estar preparado para lidar em situações de trauma.

A DIREÇÃO DO ATENDIMENTO

Já temos alguns instrumentos para trabalhar frente às emergências e urgências. Então, qual seria o objetivo do atendimento psicanalítico na situação de trauma? Qual a direção do tratamento quando o Real se impõe? Qual o viés do atendimento? Talvez de uma única entrevista? Seria: Apoio? Compreensão? Retificação subjetiva? Abertura de inconsciente? Interrogar o sujeito?

A doença e as mazelas geram horror e angústia e convocam ou à repugnância ou ao assistencialismo, e o psicanalista, deve estar preparado para não cair no engodo. É preciso que o psicanalista inclua o horror pelo qual o sujeito está passando e administre o próprio horror ao se deparar tão cruamente com a castração.
Entre muitos casos clínicos que poderiam ser discutidos aqui, demos preferência para um que saiu na mídia, o de Cissa Guimarães, já publicado e… quem não se lembra desse fato? Quem não ficou horrorizado ao saber da notícia?
Podemos dizer que o manejo é próximo, um esboço, do que, anos antes, Lacan discutia no Seminário XI: É naquilo que falta ao sujeito, no — phi, que a angústia invade e assim são abertas as portas para o objeto causa. É nesta tiquê, nesta hiância que se contrapõe ao automaton que há espaço para o analista, portanto, há lugar para o analista na tiquê, na hiância que se abre com a situação traumática. Tiquê e Automaton são termos aristotélicos e utilizados por Lacan, anteriormente ao último desenvolvimento do conceito de Real. “A função da tiquê, do real como encontro — o encontro enquanto podendo faltar, enquanto que essencialmente é encontro faltoso — de forma de traumatismo” (LACAN, 1988/1964, p.57).

 

Andréa Ladislau

Psicanalista

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